Dois amigos se encontram após vários anos. Um deles é gerente de um banco e o outro é cliente, que busca um empréstimo. O gerente diz: – Meu amigo, várias coisas aconteceram nesses anos e hoje eu uso um olho de vidro. Assim, se você conseguir identificar qual olho é a prótese, seu empréstimo estará concedido. E o amigo diz: – é o direito! O gerente do banco, estupefato, diz: – Amigo, você acertou de primeira! Como é possível com uma prótese tão perfeita? Ao que ouve, como resposta: – É que seu olho direito ainda demonstra humanidade.
Essa es (his) tória , que eu não me lembro a autoria, reflete bem meu sentimento após um julgamento ocorrido na segunda, dia 18/11 pelas comarcas de Minas Gerais. Já advirto ao querido leitor que até esse ponto veio: “causo” longo, detalhado, que não cabe no twitter. Pode rolar o feed.
Não rolou o feed? Então, vamos nessa!
Contextualizando os personagens: o primeiro, constituinte, portador de sofrimento mental crônico; o segundo, portador de sofrimento mental provocado, pelo uso de crack, álcool e remédios controlados (verdadeiro triatleta, nos termos Tim-maísticos *recomendando desde já- Vale Tudo, de Nelson Mota*); o terceiro, ser humano em conflito com a lei, procurado em outra unidade da federação e o quarto, portador de sofrimento mental decorrente da solidão provocada pela opção afetiva não ortodoxa- por incrível que pareça- ainda em 2019.
Desde priscas eras, o quarto desenvolveu um amor platônico pelo primeiro, passando a acompanhá-lo pelas ruas daquela longínqua comarca palco do júri. Em abril de 2018, o incômodo galanteio resultou em vias de fato. O destinatário do amor platônico cansou- se das investidas e deu um recado bem claro, traduzido por meio de um soco no rosto nas imediações de uma padaria. Polícia passando, fato noticiado, primeiro se oculta em outra comarca, homiziando-se na casa de uma irmã para refrescar a (já) sôfrega cabeça.
Após quarenta e cinco dias, o primeiro volta para casa que, por obra do destino e pela lei da atração dos opostos, é lindeira à casa do quarto. Dezoito horas, sem luz, refugia- se em seu asilo inviolável e deita pra dormir. Às dez pr’as sete, percebe barulho do portão de seu quintal sendo arrombado pelo segundo e pelo terceiro, que bebiam com o quarto- e sabe-se lá quais outros entorpecentes eram degustados. Após o acesso ao interior da propriedade, ouve a amistosa verbalização, acompanhada de golpes na porta de entrada: – ô seu filho da p*ta, abre essa p*rra pra gente resolver! Você não bateu no (nome do quarto)? Sai que vamos te matar!
De uma única janela da casa (única diferenciação da casa para um cativeiro), o primeiro atira algumas garrafas de vidro, para afugentar a agressão. Momento posterior, liga para o Estado seis (seis!) vezes, por meio daquele telefone que começa com um- nove e termina na base do dial, entre o asterisco e o jogo da velha (velho não fala hashtag).
Entre a chegada da efetivação dos direitos fundamentais (direito à vida, inviolabilidade do domicílio e outras cláusulas pétreas ameaçadas a pedradas), o primeiro se arma de
um podão (dá um google- dica: Luana – a cortadora de cana do Rei do Gado) e sai para defender a própria vida, atingindo o segundo, que estava armado com uma faca (indivíduo que batia na mãe e ameaçava o irmão com revólver e faca), causando os ferimentos descritos no Exame de Corpo de Delito de folhas blá blá blá.
Ato contínuo, o primeiro volta pra casa e espera a chegada do Direito, que dormientibus non succurrit.
Uniformizado, o Direito encontra o segundo ensanguentado na via pública enquanto o terceiro já havia fugido com medo da lei (soube-se depois, foragido pela prática da mercancia da desgraça e por crimes contra a vida). Verbalização e voz de prisão e o consequente grampo no pulso, à presença da Douta Autoridade Policial.
Flagrante ratificado, ao ergástulo. Custódia pro forma e ergástulo. Maio de 2018 a 18 de novembro de 2019. No meio do caminho, sentença de pronúncia e, logo após, Professor Fernando Magalhães contratado pela família para defender os interesses do primeiro e, consequentemente, a reboque, Rodrigo Nunes, como peixe piloto. Na primeira manifestação, pedido ao Magistrado: vamos julgar de acordo com as regras do jogo? Roupa civil, pra evitar influências nos jurados… Não (bem sonoro)! Vamos ao Tribunal… Após ouvir atentamente a brilhante sustentação do advogado peixe piloto (e vários elogios), o Tribunal diz não. E, inconformados, que recorram!
Ah, Brasília! Socorro! Ministra ex presidente de um Superior Tribunal concede liminar! – Julgue, mas tire o senso datenístico do julgamento. Roupas civis p’ra ele!
Em Tribuna (beca nova- situação pedia…), Conselho de Sentença formado. De Doutores acadêmicos a DOUTOR de ofício, pedreiro. Adversamente, representante do órgão ministerial feminina, empoderada e meritosa. De plano, em momento anterior, enquanto levava a roupa civil ao primeiro, na salinha da escolta, senti a ausência do olho de vidro que retratasse a humanidade e um aperto de mão formal, não material. Em suma, sem aperto, como quem bebe sem brindar.
Em instrução, ouvidos segundo e quarto. Interrogado o primeiro (“Impreparável e verborreico!”- nas sábias palavras do Professor, que disse que teve oportunidade de matar e não o fez. No meio do caminho havia um laudo. Havia um laudo no meio do caminho. Semi imputável, perigoso para terceiros (não se perca: terceiros- não terceiro). O primeiro sabe o caráter ilícito, mas não consegue se determinar. Recomendado tratamento ambulatorial (palavras do expert).
Debates: Acusação sustenta denúncia cheia, exibindo o podão de modo que causaria inveja a Jason Vorhees – homicídio tentado com duas qualificadoras (meio que impossibilitou defesa e motivo fútil). Merece adendo o fato do segundo declarar que os fatos se deram porque foi tirar satisfação pelo primeiro ter assediado sexualmente menor. Adendo dois; a menor e sua mãe negaram os fatos, elogiando o maluco beleza do bairro. Acusação sustenta que o primeiro é perigoso para a sociedade e merece o cárcere, pelo bem comum. Citado depoimento de vizinha arrolada pela defesa anterior que relatou uma passada de mão na perna anterior como precedente de comportamento.
“Dada a palavra à defesa pelo tempo regulamentar”: legítima defesa como tese principal. Subsidiariamente (bem subsidiariamente), desistência voluntária, vez que o habitante de ET Bilulândia teve a chance e não matou, com consequente condenação pela lesão grave (vez que o segundo evitou a polícia até para fazer exame como vítima) e, por fim- e não menos importante-, o privilégio pela violenta emoção.
Na réplica (por assim escolher) a acusação buscou afastar as teses defensivas e pediu a condenação pelo bem da sociedade, sob o pretexto de pouca pena pela lesão grave e pelo risco social do maluco não tão beleza solto.
Aí descambou momentaneamente a coisa. O Professor cedeu espaço ao aluno (sem luz, etmologicamente) que abriu a tréplica. Sem qualquer elegância, os jurados souberam da ausência de humanidade do olho de vidro enquanto um podão girava reproduzindo um corte de cana sob os olhares preocupados de todos- inclusive familiares do primeiro- e contratantes).
Se há em uma mesa sete pessoas e nela se assenta um nazista e os sete não se levantam, temos oito nazistas. Lembrada – e devidamente homenageada, a jornalista, escritora e documentarista e, merecidamente, premiadíssima- Daniela Arbex, foi levada à baila a – maravilhosa- obra Holocausto Brasileiro. Explicada ao Conselho de Sentença a importância da luta antimanicomial, foi encerrada a fala do aluno não sem antes lembrar as atribuições daqueles que deveriam promover justiça.
Defesa brilhantemente encerrada. Parafraseando meu outro professor Lobo Guará, Magister Dixit e, em votação, por quatro votos a zero, afastada a pretensão estatal da condenação pelo reconhecimento da legítima defesa do primeiro e consequente absolvição.
Constituinte em liberdade, poderá fazer seu tratamento ambulatorial e deixar de ser risco para si e para outrem.
Ao fim, resta a reflexão: justiça feita e menos um corpo de portador de sofrimento mental enviado à Faculdade de Medicina de algum rincão. Curável o primeiro.
E a adversa? Há cura pra falta de humanidade? E ao quinto, envolvido nessa história e subscritor? Há cura para a percepção da ausência de humanidade? Prótese ocular com aspecto humano é suficiente para curar a ausência de esperança?
No dia dezoito de novembro, olhei para um buraco que olhou pra mim. Buraco no qual reside a miséria humana. Trago nas costas a liberdade do portador de sofrimento mental e um pouco de sofrimento mental nas costas, resultado da luta pela liberdade. Que a acusadora – que esqueceu ser Promotora- não me ouça, sob pena de me considerar risco à sociedade. E, se alguém souber quem venda, compro um par de olhos de vidro que tragam humanidade. Dois pares, um pra doação.
RODRIGO NUNES
Comentários
Não há respostas para “OLHOS DE VIDRO, UM PODÃO E A MISÉRIA HUMANA”
Nenhum comentário ainda.